Caminhos que levam a outra margem do rio

Mapeamento cultural em três Reservas Extrativistas do Acre busca identificar os potenciais artísticos da floresta

Por Khelven Castro

Publicado em 30/06/2023
A Amazônia é, sem dúvida, um dos lugares mais impressionantes do mundo! O vento fresco que toca a pele, os sons dos pássaros que harmonizam a paisagem, cores e formas que complementam um cenário encantador. Nesse ambiente de uma floresta densa e úmida, a maior floresta tropical do planeta, podemos dizer: a Amazônia também é de gente! Pessoas de vários tipos, ofícios e etnias vivem entre a floresta e o mundo urbano.

Conhecer, ainda que seja uma pequena parte de tudo que a palavra Amazônia representa, é um privilégio , para além da floresta, dos rios e dos animais é importante falarmos sobre os sujeitos que vivem na outra margem do rio e conhecer quem são os guardiões das reservas extrativistas.
A SOS Amazônia, por meio do projeto Aliança pelas Florestas do Acre, desenvolvido em parceria com a Comissão Pró-Povos Indígenas do Acre e Instituto Catitu, realizou um mapeamento cultural pelas Reservas Extrativistas do Riozinho da Liberdade, do Alto Juruá e do Alto Tarauacá. O objetivo é identificar os potenciais artísticos daqueles que vivem fora do perímetro urbano e assim conhecer a arte da floresta e a força da cultura ribeirinha e extrativista.

Na Resex do Riozinho da Liberdade, criada em 2005, foram visitadas cerca de onze comunidades, cada uma com suas particularidades. O percurso é feito de barco e é nele que encontramos o primeiro morador a nos mostrar o contraste cultural entre a cidade e a floresta. Raimundo Nonato, ou Nonatim, como é conhecido, é nosso barqueiro, nascido e criado entre rios e florestas. Pilota com destreza o barco e nos contagia com sua felicidade e hospitalidade. "Nasci, cresci e quero morrer aqui. Minha riqueza não é muita, mas é essa: ter o que comer, onde plantar, uma família saudável e a proteção de Deus. É o que importa", celebra.

A viagem até a casa dele dura sete horas subindo o Rio Liberdade. Viagem tranquila, por entre águas barrentas e paisagens exuberantes. Nonato vive com a esposa e mais quatros filhos, todos nascidos na Resex. Crianças alegres que reconhecem no pai a inspiração de um homem determinado.
A transformação da marcenaria em arte,
para além do ganha pão
Passo da Pátria é a penúltima comunidade dentro da Resex Riozinho da Liberdade e é lá, há uma hora de onde pernoitamos, que nos deparamos com José dos Santos, o Duda, moço simples, alto e risonho. Ali, já conseguimos perceber a presença da arte. Os móveis brutos revelam a simplicidade e também a força do aprendizado. Duda: serra, lixa, prega e pinta. Aprendeu sozinho a marcenaria para poder complementar a renda da família. "Aprendi a fazer móvel sozinho, olhava alguém fazendo ou quando ia visitar alguém eu reparava as mesas, cadeiras. O primeiro que fiz saiu meio torto, mas o segundo já foi melhor, né?", constata.

Duda é um dos muitos marceneiros que vivem dentro da Resex, assim como Marcos, Francisco e Damásio, que aprenderam a arte da marcenaria para poder dar o melhor para sua família. Na mão desses homens, a madeira bruta ganha a forma de casas, móveis e barcos.
Duda é um dos muitos marceneiros que vivem dentro da Resex, assim como Marcos, Francisco e Damásio, que aprenderam a arte da marcenaria para poder dar o melhor para sua família. Na mão desses homens, a madeira bruta ganha a forma de casas, móveis e barcos.
Da colocação de Duda, seguimos adiante... A subida do igarapé Forquilha é desafiadora, são mais de três horas até chegar na casa de uma família de artesãos. O rio estreito fica ainda menor diante da paisagem grandiosa. As árvores por pouco não tapam a luz do sol e a habilidade do catraieiro transforma nossa missão em aventura.

Damásio Ferreira aprendeu na infância a como fazer barco. Hoje, ele é um marceneiro de mão cheia e ensina seu filho de 16 anos o ofício da marcenaria. Sua esposa, Maria Edite, fez o próprio fogão à lenha, desenha nas cuias e transforma o vidro em arte. Para nossa surpresa, descobrimos que ela consegue cortar o vidro no formato que deseja, apenas com uma tesoura e um pouco de água. "É bem fácil cortar vidro. Eu desenho com um pincel, faço coração, lua, estrela, às vezes árvores. Aí é só colocar o vidro dentro da água e cortar com a tesoura. É tão facinho", simplifica.
De colocação em colocação, subindo e descendo rios, descobrimos a arte e o saber dos sujeitos da floresta. São talentos que atravessam gerações, passando de pais para filhos. Pessoas que não tiveram curso ou formação específica, e ainda assim os consideramos verdadeiros artistas.

Aos 16 anos, Júnior Ferreira, filho de Damásio, constrói sozinho seu próprio barco. Seu pai é sua fiel fonte de inspiração, que o acompanha lado a lado no serviço. Aos poucos, Júnior cria peças em miniaturas, réplicas de barcos e remos, que, segundo ele, servem para aprimorar o talento.
Viver na floresta nunca foi um impedimento para a arte: o meio constrói o artista
A música também preenche todos os espaços, herança indígena e dos tempos do seringal. São canções antigas passadas de ouvido a ouvido e que hoje estão presentes na prática religiosa e nos festejos. São canções que embalam a saudade, amenizam a dor, alegram a vida e acompanham cada um. Ítalo Lima tem 18 anos de idade, vive na colocação Tristeza com a mãe, o pai e mais sete irmãos. Ele ajuda a mãe nas tarefas da casa e o pai no roçado. Cuida dos irmãos e toca na igreja. "Eu queria ser cantor profissional, tocar em show igual aqueles artistas que a gente vê na TV ou ouve no rádio", vislumbra.

As andanças pela Resex do Riozinho da Liberdade nos revelam uma verdadeira cultura extrativista, que permeia a vida, o trabalho, a arte e a religiosidade daquelas pessoas. Se tiver olhos, ouvidos e sentidos atentos à natureza, a inspiração vem de todo lugar.

Em comunidades distantes dos municípios é possível ver as mais diversas artes expressas de diversas formas e evidenciam as mudanças sociais entre urbanização e comunidades ribeirinhas.

O pintor, o artesão, a tocadora, a bordadeira, utilizam dos métodos próprios para o desempenho do trabalho e mesmo que em muitos casos o material seja simples, a qualidade é alta. Edvaldo, o Duta, de 25 anos, é pintor e desenhista. A inspiração veio desde muito novo, mas assume, o chá da ayahuasca que lhe trouxe o olhar artístico para os seus desenhos.

A A arte de cantar atravessa fronteiras, vozes ecoam pelas árvores e harmonizam com o som da chuva. Artemízia, jovem com apenas 20 anos, canta, toca e compõe músicas. Nascida e criada dentro da vila Restauração na Resex Alto Juruá, ela canta e escreve para passar o tempo enquanto trabalha na mercearia local. A voz potente é sua marca registrada, sua técnica é de quem aprendeu sozinha a tocar o violão.
Ana Paula, de 22 anos, sonha muito. Ela vive na comunidade Duas Nações na Reserva Extrativista do Alto Tarauacá. Ana Paula canta, toca, escreve, é fotógrafa, faz muito, mas sente que não faz nada. Pratica sua arte em silêncio, para si, é preciso inspirar essas pessoas e soltá-las para o mundo. O potencial artístico é incrível.

As árvores criam o ambiente perfeito para aqueles que procuram fugir do estresse diário. Lá as pessoas não morrem de estresse, suas preocupações são outras e suas felicidades são muitas. A simplicidade convence quando o sorriso estampa. Não é preciso saber ler ou escrever, mas sabem! Sabem viver na floresta, pela floresta uma dança harmoniosa entre viver a sobreviver.

"No mundo em que a gente veve, não há ninguém mais importante que ninguém. Às vezes a gente sabe algo que o outro não sabe, e assim vamos nos ajudando. O conhecimento deles (os de fora) é a ciência, o nosso é a prática, vivendo na floresta". O comentário de Juscelino, ou o seu Peba, como é conhecido na comunidade, traz toda suas vivências dentro da reserva. Hoje aos 59 anos conta histórias desde a criação da reserva e cuida com muito amor do lugar onde vive.
"No mundo em que a gente veve, não há ninguém mais importante que ninguém. Às vezes a gente sabe algo que o outro não sabe, e assim vamos nos ajudando. O conhecimento deles (os de fora) é a ciência, o nosso é a prática, vivendo na floresta"
"Se tem uma coisa que eu gosto é da natureza, sou natural mermo. A natureza facilita nossa vida, tudo tem, tudo dá!" Seu Pedro, 44 anos, comunidade Marajá. "A natureza ensina muita coisa pra gente, só precisa saber ver. A arara quando ela passa a gente já sabe que é friagem, o papagaio solto na mata se tiver cantando feliz é por que não vai chover, dia bom pra tirar seringa, mas se ele tiver triste, vai ser chuva em. A natureza me ensinou muita coisa." Finaliza Pedro.

O mapeamento cultural prova o quão os sujeitos amazônidas possuem a arte em suas vidas e são tão importantes quanto qualquer outros afazeres. A arte respira nos povos, perpassa a floresta e ajuda na manutenção do bem viver.
Sobre as Reservas Extrativistas
As Reservas Extrativistas são Unidades de Conservação criadas com o objetivo de proteger a vida e a cultura de populações tradicionais, bem como assegurar o uso sustentável de seus recursos naturais. O sustento destas populações se baseia, em grande parte, no extrativismo e, de modo complementar, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte.

As reservas têm um papel importante na manutenção da biodiversidade, protegendo e cuidando dos espaços florestais e orientando aqueles que vivem dentro dela. A primeira Resex do Brasil foi a Reserva Extrativista do Alto Juruá, criada em 1990 e conta com 506.186,00ha. Enquanto que a Reserva Extrativista do Alto Tarauacá, surgiu no ano de 2000 com 151.200,00ha e a Reserva do Riozinho da Liberdade em 2005, com 325.603,00ha.
Sobre o projeto Aliança
O Projeto Aliança visa implementar a gestão territorial integrada das Terras Indígenas e Unidades de Conservação do Acre por meio de ações de proteção e monitoramento territorial, fortalecendo alianças entre povos indígenas e populações tradicionais, com foco na segurança alimentar sustentável e no empoderamento de jovens e mulheres. Esta iniciativa faz parte de um consórcio entre a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), SOS Amazônia e Instituto Catitu.
Sobre nós
  • Khelven Castro
    Jornalista
    É Jornalista, comunicador popular e ativista ambiental amazônida. Formado pela Universidade Federal do Acre e cursando especialização em educação das Relações Étnicos-Raciais. Tem como linha de pesquisa temas como: representação, cultura e comunicação. Atualmente é colaborador na SOS Amazônia.
  • Maíra Santos
    Fotógrafa
    Fotógrafa, bióloga e mestra em Ecologia pela Universidade Federal do Acre-UFAC. Atualmente trabalha com fotografia de eventos sociais, fotografia de natureza e fotografia dos povos tradicionais.

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