Aos 95 anos, Dona Petronília Elias dos Santos ainda lembra em detalhes da época em que trabalhava “caçando” seringueiras na floresta. Assim, extraía o látex, matéria-prima para produção de borracha. Ela trabalhou por aproximadamente 20 anos no Seringal Iracema, em Marechal Thaumaturgo, região Alto Rio Tejo no interior do Acre.
"Eu levantava cedo, fazia o café e cinco horas saía mais meu filho. Levava farinha e sal pra, se matar alguma embiara [alimento caçado ou pescado], fazer um fogo e assar pra comer. Nós andava mais de meia hora pra chegar na primeira seringa. Logo na entrada da estrada tinha duas seringueiras. Ele [o filho] cortava uma e eu outra. Cortava todas as seringas da estrada e ficava uma meia hora no “fecho” [no final da estrada] esperando dar o tempo de voltar colhendo o leite. Chegava em casa, levava pro defumador e já tinha as gamelas [vasilhas de madeira] feitas pra colocar o leite, botava leite de ofê [leite de uma outra árvore, ajudava a coalhar/dar espessura mais rápido]. De primeiro, fazia umas cavernas no fundo da gamela pra borracha ficar marcada. Nós vendia a borracha na foz do bajé pro Agenor ou pro Valdemar [marreteiros da época, conhecidos por regatões], o preço da borracha era bom.”
Diante dos níveis alarmantes de desmatamento e outras práticas ilegais, como o garimpo, e do incentivo ao agronegócio em detrimento da agricultura familiar e do extrativismo, a tradicional coleta da seringa (re)surge como uma alternativa de resistência à degradação ambiental que coloca em risco a biodiversidade e os modos de vida de populações tradicionais e povos indígenas. A busca por novos mercados, com preços justos e melhores condições de trabalho, motivou a reabertura de antigas estradas de seringa, desativadas desde a década de 1990, quando a borracha nativa era comercializada a preços irrisórios.
No Acre, duas Reservas Extrativistas (Resex) apresentam resultados positivos ligados à cadeia de valor da borracha. Na Resex do Alto Juruá, as famílias se reorganizaram em torno da coleta do látex após a realização de oficinas de manejo e boas práticas de produção com investimentos da empresa francesa Vert, por exemplo. Segundo o jovem Anailson Silva, de 23 anos, presidente da Cooperativa de Borracha da Resex Alto Juruá, 36 extrativistas atuam nessa cadeia de valor e são responsáveis pela produção de 11 toneladas de borracha, em média, por ano, com a expectativa de chegar a 15 toneladas em 2022. A matéria-prima atende a demanda da Vert, que utiliza borracha natural na fabricação de tênis.
Potencial de conservação
Segundo o guia Por entre estradas e varadouros: o caminho das pedras para o mercado sustentável da borracha amazônica, produzido pela WWF Brasil em 2015, a Amazônia é o único lugar do mundo onde o látex é extraído de seringueiras nativas sem prejuízo para as árvores, numa dinâmica que beneficia tanto os extrativistas, que a partir dessa matéria-prima conquistam seu sustento, quanto a floresta, que permanece preservada.
Mas as condições de trabalho de pessoas que conseguem seu sustento a partir da extração do látex nem sempre foram favoráveis. Isso porque, semelhantemente ao modo como a colonização ocorreu no restante do que hoje conhecemos como Brasil, o processo imposto aos povos que habitavam os territórios atualmente chamados de Amazônia foi marcado por muita violência e exploração. Os chamados ciclos da borracha ilustram essa dinâmica.
O Seringal Iracema, onde trabalhou Dona Petronília, se tornou Reserva Extrativista em 1990, quando passou a se chamar Resex Alto Juruá. A criação das reservas extrativistas é uma forma de garantir que as pessoas possam ganhar a vida na floresta sem danificá-la. A extração da borracha, a coleta de frutas, castanhas e plantas medicinais são exemplos de atividades presentes no dia-a-dia dessas comunidades.
Para além da matéria-prima, mulheres e homens que vivem do extrativismo passaram a vender a borracha em níveis iniciais de processamento. A borracha produzida na floresta precisa passar por esse processo antes de ser usada na indústria, sobretudo na produção de pneus. Segundo a WWF, isso tem ampliado a renda dessas famílias e estimulado o desenvolvimento de novas habilidades técnicas e comerciais.
Ainda segundo o relatório da organização, a atividade também faz com que as pessoas conhecidas como seringueiras se organizem em associações e cooperativas, fortalecendo-se e aumentando a inserção do produto no mercado. Há benefícios para toda a comunidade, como a fonte de renda regular.
Em outra reserva extrativista, Jilberto Maia, sozinho, é responsável por fazer o manejo de três estradas de seringa, que compõem a unidade de produção familiar (colocação) onde reside, batizada como Colocação Floresta, na Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, localizada no município de Sena Madureira, interior do Acre. Cada estrada de seringa tem cerca de 100 hectares, o que equivale a dizer que, indiretamente, ele ajuda a conservar 300 hectares de floresta, tendo em vista que a seringueira é uma árvore nativa da Amazônia e se encontra dispersa no meio da mata.
Além de seringueiro, Jilberto é um artesão habilidoso. O contato com a natureza, o vai e vem por entre árvores e varadouros despertaram nele o olhar atento e a criatividade de reproduzir em borracha animais da biodiversidade amazônica. Anta, tatu, jacaré, capivara, jabuti, coruja, onça, dentre muitos outros animais, ganham forma nas mãos do artista, que mistura o látex ao pó de serragem. Cada animal em miniatura é comercializado, em média, a 60 reais. “Cheguei a fazer até uma onça pintada para um show da Maria Bethânia’, orgulha-se.
Para Jilberto, ser seringueiro é uma honra por ser um trabalho que atravessa gerações. “Eu comecei a cortar seringa com nove anos de idade, andando mais meu pai. A partir dos 12 anos, eu comecei a cortar sozinho, ajudei meu pai a criar meus irmãos, construí família e criei os meus filhos”, relembra. Hoje, com 59 anos, Jilberto ainda vive da seringa e a comercialização da borracha representa 95% do seu orçamento, seja na forma de matéria-prima como na produção do artesanato.
Ciclo da borracha
O corte da seringueira é o símbolo do extrativismo na Amazônia, especialmente no Acre, e deu origem a grandes movimentos migratórios para ocupação da região, denominados “ciclos da borracha”. O mais expressivo deles ocorreu no final do século 19 e início do século 20, quando retirantes nordestinos, a maior parte composta de cearenses, fugiram da miséria e da terrível seca em sua terra natal e partiram para os seringais amazônicos em busca de uma vida melhor.
Naquela época, a extração do látex atendia a demanda crescente do mercado internacional, principalmente da indústria automobilística. A ocupação do Território do Acre, até pertencente à Bolívia, chegou a desencadear um conflito armado e diplomático entre Brasil o país vizinho pela posse do território, que foi oficialmente anexado às fronteiras brasileiras pelo Tratado de Petrópolis, de 1903.
Os retirantes nordestinos chegavam ao Acre pelo sistema de aviamento, isto é, o patrão seringalista financiava as despesas iniciais, desde a passagem até os insumos de trabalho. Antes mesmo de percorrer as estradas de seringa, o migrante estava preso por dívidas que se acumulavam cada vez mais, já que o patrão detinha o monopólio do comércio dentro das colocações e controlava os preços da borracha. Endividado pelo sistema de aviamento, o seringueiro ainda tinha que resistir a uma realidade inóspita, marcada por doenças tropicais, como a malária, e pelos conflitos com povos indígenas, originários da região.
*Este conteúdo foi produzido com apoio do programa Jornalismo e Território, da Énois Laboratório de Jornalismo. Para saber mais, acesse www.enoisconteudo.com.br ou @enoisconteudo nas redes sociais.