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Povos indígenas e organizações ambientais se unem contra o marco temporal

Como parte da mobilização nacional, representantes das etnias Manchineri, Huni Kuin, Shanenawa, Kaxarari, Puyanawa e Apurinã, dentre outras organizações que lutam a favor da causa ambiental, protestaram, no dia 7 de junho, na frente da Assembleia Legislativa do Acre contra o Marco Temporal (PL 490/07). A manifestação ocorreu após a aprovação do projeto de lei na Câmara dos Deputados e a votação da tese do marco temporal no Supremo Tribunal Federal, que foi adiada por um período de 90 dias.

A ação foi uma resposta do movimento indígena e das organizações parceiras, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígena da Amazônia Brasileira (Coiab). O movimento contra o marco temporal começou a ganhar força desde que a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 30 de maio de 2023, o PL 490/2007, que pretende alterar a lei 6001/73, transferindo para o Congresso Nacional a competência sobre demarcação de terras indígenas, ignorando os princípios assegurados na Constituição Brasileira.

A iniciativa limita a demarcação de terras indígenas aos territórios ocupados até a promulgação da Constituição Federal - em 5 de outubro de 1988. A proposta segue agora para ser votada no Senado, onde recebe nova identificação: PL 2903, permanecendo, contudo, sua ameaça aos direitos dos povos indígenas.
Foto: SOS Amazônia
Violência contra indígenas
O presidente da Câmara dos Deputados e a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) são os principais apoiadores do projeto. Nas duas eleições à presidência, Arthur Lira (Progressistas/AL) se elegeu com os votos da bancada ruralista. O medo dos indígenas é que a medida estimule mais violência contra os povos da Floresta Amazônica, trazendo mais mortes, fome, desmatamento e atividades de garimpo e grilagem.

Em audiência na Câmara dos Deputados, a assessora jurídica do Conselho do Povo Terena, Priscila Terena, disse que, caso o PL entre em vigor, impactará 156 terras, oito etnias e mais de 80 mil indígenas. O Brasil possui cerca de 305 etnias no total, somente o Acre são 15 etnias, além de povos isolados. Esse número é expressivo o suficiente para causar preocupação das lideranças indígenas locais.

Sobre a votação do marco temporal, Rwui Manchineri, presidente do movimento Matpha, considera que a tese é uma afronta à existência das populações indígenas, já que os direitos assegurados pela Constituição estão sendo negados às populações originárias.

“Quando falamos do marco temporal estamos falando de um aumento significativo da violência sobre as nossas populações. Estamos falando da exploração madeireira nos nossos territórios, aumento da exploração do garimpo ilegal, da violência contra as nossas mulheres, da taxa de suicídio dos nossos parentes e aumento da presença de latifundiários”, diz. Rwui Manchineri ainda questiona: “quando teremos o dia da independência dos povos indígenas, a partir da qual não haverá nenhuma ameaça contra nós?”

De acordo com um relatório da Comissão da Pastoral da Terra (CPT), a violência contra os indígenas brasileiros representa 38% dos assassinatos no campo registrados em 2022. Além disso, o uso de mercúrio na mineração ilegal de ouro já impõe uma triste realidade de fome, doenças e morte de gerações.
Foto: SOS Amazônia
Inconstitucionalidade
Em 1500, quando os portugueses chegaram ao Brasil, não descobriram um território “novo”, pois ele já era terra indígena. De lá pra cá, etnias de todo o território brasileiro lutam pela permanência em suas terras. O PL 490/2007 sustenta a tese do marco temporal criada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida também como bancada ruralista, que limita a demarcação dos territórios ocupados até 5 de outubro de 1988, mesma data de publicação da Constituição Federal.

A 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) divulgou uma nota pública, em 29 de maio, reafirmando a inconstitucionalidade do PL 490. Veja, abaixo, os principais trechos do documento:

1) "(...) Ocorre que o estatuto jurídico das terras indígenas, disciplinado pelo artigo 231 da Constituição, não pode ser alterado por lei ordinária, o que demonstra a patente inconstitucionalidade do PL 490/2007. Ademais, os direitos dos povos indígenas, em especial o direito ao seu território tradicional, constituem cláusula pétrea, integrando o bloco dos direitos e garantias fundamentais, não podendo ser objeto sequer de emenda constitucional.

2) A Constituição garante aos povos indígenas direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo a tradicionalidade um elemento cultural da forma de

ocupação do território e não um elemento temporal. Fixar um marco temporal que condicione a demarcação de terras indígenas pelo Estado brasileiro viola frontalmente o caráter originário dos direitos territoriais indígenas.

Ademais, a tese do marco temporal, se aprovada, consolidaria inúmeras violências sofridas pelos povos indígenas, como as remoções forçadas de seus territórios, os confinamentos em diminutos espaços territoriais, os desapossamentos, os apagamentos identitários históricos, entre outras".

Lucas Manchineri diz não compreender o porquê do poder público se voltar contra os povos indígenas e, em defesa de seu povo, ressalta a importância que as populações indígenas possuem para o meio ambiente. "Nós tanto fazemos o manejo, quanto cuidamos do território, do vento, da água, do rio e toda a mãe natureza que existe no planeta. Os ruralistas querem moer nossas histórias, nossas vidas”, enfatiza.

No mês de janeiro, após a cerimônia de posse, o presidente Lula prometeu a continuidade do reconhecimento de todas as terras indígenas até o fim do seu mandato, sem prever o impasse político que enfrentaria meses mais tarde. A homologação das terras indígenas estava suspensa desde 2018 e, apesar da nova configuração governamental no país, com o Ministério dos Povos Indígenas sendo coordenado pela ministra Sonia Guajajara, ainda há dificuldades a serem superadas.

O presidente anunciou a continuidade do processo em seis territórios: Arara do Rio Amônia (AC), do povo Arara; Uneiuxi (AM), do povo Nadöb; Kariri-Xokó (AL), do povo Kariri-Xokó; Tremembé de Barra do Mundaú (CE), do povo Tremembé; Avá-Canoeiro (GO), do povo Avá-Canoeiro; e Rio dos Índios (RS), do povo Kaingang. Outras sete terras indígenas aguardam na fila e mais de mil ainda nem iniciaram o processo de homologação.
Foto: SOS Amazônia
Consequências
Se esse projeto passar no Senado, teremos nossos direitos constitucionais violados e correremos o risco de perder as terras já demarcadas. Os povos indígenas estão atentos a todas as pautas que levantam contra o direito de coexistir e pretendem continuar resistindo. A demarcação das terras indígenas é um pedido antigo e a proposta é que ele seja conquistado sem derramar mais nenhuma gota de sangue indígena.

Se o marco temporal for aprovado de vez, diversas etnias correm o risco de perder o direito de uso de suas terras, até mesmo os povos isolados na floresta. Outra consequência deve ser a escalada de crimes ambientais e contra os direitos humanos, a partir da ocupação de grileiros, que derrubam árvores e roubam terras públicas, e de garimpeiros, que envenenam o solo e os rios da bacia amazônica.

Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, os indígenas representam 5% da população mundial e ocupam 28% da superfície terrestre, que hospeda 80% da biodiversidade do planeta. Apesar de estarem em menor número, são responsáveis pela preservação e proteção das florestas, como conta Yube Yawamapu, integrante da Organização da União da Juventude Huni Kuin. Yube exalta como o cuidado da floresta é importante para as famílias indígenas que moram e produzem alimento por meio dessas terras.

“Se a demarcação já está prevista na constituição, respeitem! Não queremos a floresta destruída! A gente quer paz, quer felicidade, quer amor, quer tranquilidade, quer vida para a nossa convivência familiar. A floresta para nós é vida, a floresta é uma mãe, a floresta é uma escola e sem floresta não somos nada”, defende Yube Yawamapu. O jovem líder ainda faz um apelo ao poder público. “Por favor, autoridades que representam esse Brasil, a gente não quer invasão, não queremos ameaças. Não ao marco temporal!”, reivindica o líder Huni Kuin.

O movimento segue atento às decisões a respeito do marco temporal, comunicando que atacar os povos indígenas é atacar a humanidade e destruir a floresta.
Foto: SOS Amazônia
Articulação
No Acre, os protestos foram mobilizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab), ONG Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (Matpha), Comissão Pró-índio do Acre (CPI), Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiac), União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), SOS Amazônia, Comitê Chico Mendes, Coletivo dos Estudantes Indígenas da Universidade Federal do Acre (Ceiufac), Federação do Povo Huni Kuin do Estado do Acre (Fephac), Organização dos Povos Indígenas do Acre, Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia (Opin) e Mulheres Indígenas do Acre, Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia (Sitoakure), Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Foto: SOS Amazônia
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